Uma crise institucional que abrange os três Poderes da República vem sendo armada com a discussão sobre a anistia aos acusados do golpismo que culminou com a vandalização dos prédios representativos de nossas instituições democráticas em Brasília. O governo foi surpreendido porque 146 deputados federais que supõe estarem em sua base parlamentar assinaram o pedido de urgência do projeto de anistia. A iniciativa não significa, fique claro, que os mesmos 262 que assinaram o pedido de urgência votarão a favor. No entanto a manobra legislativa que o líder do PL, Sóstenes Cavalcante, aplicou, protocolando o pedido de urgência para que nenhum dos assinantes possa retirar seu apoio, pegou o governo mais uma vez de surpresa.
O governo se considerou traído, o Supremo Tribunal Federal (STF) também está irritado com a atitude do Congresso, considerada uma afronta. Ministros pressionam o presidente Lula a fazer retirar assinaturas de apoiadores, algo que agora não há mais chance de acontecer. É uma crise envolvendo os três Poderes, com implicações importantes na relação de um governo de coalizão, mas sem muita eficácia. É uma coalizão sem consequência, pois os políticos têm seus interesses próprios e não respeitam mais a necessidade de ser fiéis ao governo para ter cargos e ministérios.
É uma relação diferente historicamente. É a primeira vez que existe um governo de coalizão em que os partidos não se sentem obrigados a ser leais ao governo em determinados assuntos. É uma nuance nova, difícil superar. O governo tem conseguido apoio para aprovar temas econômicos ou políticos, mas não textos que lidam com questões morais ou ideológicas, como a anistia aos rebelados do 8 de Janeiro. O texto do Projeto de Lei é uma barbaridade, traz uma série de inconstitucionalidades, é uma afronta ao STF e à Justiça brasileira.
Certamente será considerado inconstitucional, o que só agravará a crise. O melhor seria que não tivesse prosseguimento no Congresso. Só levar a questão a plenário é uma afronta ao STF, porque o projeto interfere em decisões que são da Justiça. Políticos precisam entender que têm limites. O problema maior é que a anistia, embora de abrangência quase obscena, tem o objetivo central de livrar previamente Bolsonaro de uma condenação quase certa. Há brechas até para tentar anular a condenação do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) por abuso de poder político ao usar o Palácio da Alvorada, residência oficial do presidente, para uma ação eleitoral contra as urnas eletrônicas.
O Congresso, na verdade, interfere em diversas áreas do Judiciário para ajudar Bolsonaro a se tornar candidato à Presidência no ano que vem, mas tudo indica que não haverá espaço para a manobra. Não creio também que o presidente da Câmara, Hugo Motta, se disponha a ser o responsável por uma crise institucional poucos meses depois de eleito. A ameaça de convulsão social caso Bolsonaro seja preso não parece verossímil.
Basta lembrar que Lula, também ex-presidente, foi preso pela Operação Lava-Jato sem que houvesse grande reação. Se Bolsonaro tentar mobilizar seus apoiadores para impedir sua prisão, consumará mais uma tentativa de golpe. O mais provável é que tente se evadir do país diante da prisão iminente, deixando seus seguidores mais uma vez sem sua presença física no país no momento da decisão. Será um foragido da Justiça, e sua carreira política será interrompida, a não ser que tente liderar do exterior um outro golpe, o que não parece plausível. Se apoiar um candidato do exílio, esperando um indulto do novo presidente eleito com sua ajuda, será uma campanha ridícula, como se estivesse numa luta de resistência, e não fosse simplesmente um foragido.
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[1] https://academia.org.br./academicos/merval-pereira