O economista, filósofo e escritor Eduardo Giannetti — imortal da Academia Brasileira de Letras — lista seis consequências do tarifaço de Donald Trump na economia mundial: a redução do comércio internacional, desvio e reconfiguração dos fluxos de comércio, perda de eficiência das economias, já que o protecionismo gera má alocação de recursos, inflação, recessão com a paralisia dos investimentos e, no campo financeiro, dúvidas se os títulos do Tesouro americano ainda são o porto seguro diante de crises internacionais e nos momentos de incerteza.
Quais as consequências das medidas tomadas pelo presidente Donald Trump?
A primeira é a redução do comércio internacional, mas isso vai depender de como transcorrerem as negociações entre os países. Se houver uma escalada como nos anos 1930, haverá uma redução de grande magnitude, com efeito dramático no nível de atividade no mundo. A segunda consequência é uma reconfiguração dos fluxos de comércio. Países como China, México e Canadá, muito afetados, vão procurar outros mercados. O Brasil pode se beneficiar do fechamento do mercado chinês para os produtos americanos, com a venda de proteína animal, soja, milho. Países terão de tomar precauções para não serem invadidos por produtos de terceiros que ficaram privados do mercado dos EUA. É uma preocupação no Brasil e na Europa.
A terceira consequência é a perda de eficiência das economias. Protecionismo gera má alocação de recursos, que serão direcionados não para onde são mais eficientes, mas para onde as normas tarifárias vão orientá-los. O protecionismo leva à perda de eficiência microeconômica. Outro ponto é a inflação. Isso é inevitável, porque os preços vão ficar mais altos de um modo geral, e isso pode levar o banco central americano, se mantiver a independência, a aumentar os juros, o que agrava um cenário de redução da atividade.
No campo financeiro, a dúvida que começa a surgir é sobre a dívida americana, o título do Tesouro como porto seguro diante das crises internacionais e nos momentos de incerteza. E, por fim, a recessão que está se desenhando, com a incerteza criada por uma mudança atabalhoada das regras, feita pela maior economia do mundo. Há uma paralisia das decisões de investimento. É dado, já aconteceu. A ação de Trump comprometeu a confiança no ambiente de negócios.
Haverá uma recessão global?
Além do risco das medidas, há o risco em relação ao ambiente macroeconômico. Qual vai ser a taxa de juros, de câmbio, qual regime de comércio internacional vai prevalecer? Trump aumentou exponencialmente o risco para o empresário. É um risco que está contratado. Está sujeito a medidas caprichosas e arbitrárias. É um dano de primeira ordem, um dos fatores da alta da inflação e da redução do nível de atividade na economia global. A confiança é um ativo fundamental, e Trump está corroendo a confiança nas regras do jogo.
Como explicar essa postura?
Um terço da produção manufatureira está na China. Centenas de milhões de asiáticos são mais produtivos, trabalham mais horas e recebem uma fração do que ganha um trabalhador ocidental. Evidente que houve uma migração de investimento para espaços econômicos que oferecem rentabilidade que seria inalcançável em países maduros. Com a pandemia e o populismo mercantilista de Trump, isso entra em marcha a ré. A ascensão da extrema direita no mundo é um reflexo do descontentamento dos trabalhadores ocidentais com a situação criada pela hiperglobalização.
A entrada de centenas de milhões de asiáticos na produção global foi devastadora para a pretensão de segurança e melhoria de vida da classe trabalhadora ocidental. Perdeu capacidade de negociação, perdeu emprego. Esse caldo de ressentimento e frustração levou a extrema direita ao sucesso eleitoral. A classe média e trabalhadora do Ocidente perdeu muito da segurança e prosperidade. A questão é como oferecer alguma resposta que não seja regressiva, atabalhoada e desastrada, como está acontecendo nos EUA.
Isso levou a essa mudança na atitude dos americanos?
É uma total inversão do padrão de pensamento econômico ao longo de décadas. Na história do pensamento econômico, é muito patente a regressão ao mercantilismo do século XVII, num pensamento que antecedeu a Revolução Industrial, quando as considerações geopolíticas dominavam sobre a eficiência e racionalidade econômica, quando o poder sobre as nações era mais determinante do que o bem-estar e a geração de riqueza.
Trump está regredindo ao mercantilismo, com esse objetivo de fazer superávit na balança comercial, ter produção doméstica para o consumo do país. Voltamos, no século XXI, para um pensamento do século XVII, em busca do poder de uma nação frente a seus competidores.
Como ficará o equilíbrio de forças entre as duas maiores economias do mundo?
Não há dúvida de que os EUA são uma potência em declínio e a China é uma potência em ascensão. A maneira como o país lida com perda de poder é que define a natureza do jogo. A ideia de que a China pode se desconectar sem maior prejuízo não me parece que é o caso. O regime autocrático na China se exacerbou nos últimos anos. Depende, para sua legitimidade, de prosperidade, de horizonte de melhoria de vida da população.
A autocracia será comprometida num ambiente em que a vida já não melhora, não há crescimento tão acentuado, as expectativas das novas gerações de melhorar não são dadas. A legitimidade de natureza econômica diminui naturalmente. Começam a surgir demandas e conflitos que o Estado chinês não tem como assimilar. Vimos isso com o milagre econômico no Brasil, quando havia uma quase euforia, a legitimidade estava garantida. Quando começa a fazer água, a sociedade civil começa a despertar, a se organizar e questionar o poder. A China pode passar por processo semelhante. Os chineses se acostumaram com melhoria das condições de vida a cada geração.
E como ficam os EUA?
Só acelera o declínio americano. Trump conseguiu um feito. Nenhum esforço de diplomacia conseguiria colocar numa mesma mesa Japão, Coreia do Sul e China. É tamanha a desordem, a incerteza, que inimigos viscerais se unem (estão negociando uma área de livre comércio). Essas medidas também podem desbloquear o acordo da União Europeia e o Mercosul.
E o Brasil?
Somos uma economia fechada, pouco ligada ao comercio mundial. Mercado interno grande ajuda muito numa hora assim. Temos capacidade de ocupar espaços que vão se abrir com a reconfiguração do fluxo de comércio. De modo geral, quando tem crise externa, o Brasil reage bem.
Matéria na íntegra: https://oglobo.globo.com/economia/noticia/2025/04/19/trump-esta-regredindo-ao-mercantilismo-diz-o-economista-eduardo-giannetti.ghtml